A América do Sul registra um terço das mortes por covid no mundo, apesar de ter 5,5% da população global. A crise decorre de forças previsíveis: poucas vacinas, imunização lenta, sistemas de saúde precários e economias frágeis, que dificultam a imposição de quarentenas. Mas a crise é um problema também para os países ricos, que tentam voltar à normalidade. A pandemia fora de controle pode transformar a região em incubadora de novas cepas, ameaçando o progresso feito na Europa e nos EUA.
“Se a região fracassar, novas e mais perigosas variantes podem surgir”, disse Jarbas Barbosa, da Organização Pan-Americana da Saúde (Opas), repetindo o mesmo temor que os especialistas têm de as novas cepas indianas se espalharem pelo mundo. “Isso pode nos custar tudo o que o mundo está fazendo para combater a pandemia.”
A disseminação do vírus na América do Sul pode ser atribuída, pelo menos em parte, à variante P.1, identificada pela primeira vez em Manaus, no final do ano passado. A cidade foi devastada pelo vírus, em meados de 2020, e a segunda onda foi ainda pior do que a primeira.
Embora os dados estejam longe de ser conclusivos, estudos iniciais indicam que a P.1 é mais transmissível do que o vírus original e está associada a uma maior taxa de mortalidade entre pacientes mais jovens e sem doenças preexistentes. A variante também pode reinfectar pessoas que já tiveram covid, embora não esteja claro com que frequência isso ocorre.
“A P.1 está presente em pelo menos 37 países, mas parece ter se espalhado mais pela América do Sul”, disse William Hanage, pesquisador da Universidade Harvard. Em toda a região, os médicos dizem que os pacientes que chegam aos hospitais agora são muito mais jovens e ficam mais doentes do que antes.
Em Bogotá, na Colômbia, a prefeita Claudia López Hernández vem alertando os moradores para se prepararem para “as duas piores semanas” de suas vidas. O Uruguai, até então elogiado como modelo de controle do vírus, agora tem uma das maiores taxas de mortalidade do mundo, e a contagem diária de mortos atingiu recordes na Argentina, Brasil, Colômbia e Peru. Até a Venezuela, onde o governo é conhecido por esconder estatísticas de saúde, admite que os óbitos aumentaram 86% desde janeiro.
A dimensão da epidemia na América do Sul dificulta ainda mais o combate. A região impôs alguns dos lockdowns mais rígidos do mundo, fechamento de escolas longos e as maiores contrações econômicas do planeta. Mesmo assim, especialistas temem que a região esteja a caminho de uma das infecções mais demoradas do mundo, deixando cicatrizes na saúde pública, na economia, na sociedade e na política que podem ser mais profundas do que em qualquer outro lugar.
“É uma história que está só começando a ser contada”, disse Alejandro Gaviria, economista e ex-ministro da Saúde da Colômbia. “Tentei ser otimista. Quero pensar que o pior já passou. Mas isso vai contra as evidências.”
A América do Sul tem outro desafio espinhoso, segundo as autoridades de saúde: viver lado a lado com o Brasil, país de mais de 200 milhões de habitantes, que faz fronteira com quase todas as nações da região, e cujo presidente, Jair Bolsonaro, tem minimizado a ameaça do vírus e atrapalhado as medidas para controlá-lo, ajudando a alimentar uma perigosa variante que agora está arrasando o continente.
No entanto, outros governos sul-americanos também patinam no combate à pandemia. No Peru, o número de mortes diárias vem batendo recordes – e os cientistas dizem que o pior ainda está por vir. No início, quando os primeiros casos foram registrados, em 2020, o governo peruano decretou um lockdown. Mas, com milhões de pessoas trabalhando no setor informal, impor quarentenas se tornou insustentável. Os casos explodiram e os hospitais logo entraram em colapso. Em outubro, o país se tornou o primeiro do mundo a registrar mais de 100 mortes por 100 mil habitantes.
Na virada do ano, com os casos em declínio, o governo acreditou que o nível de imunidade havia atingido patamares satisfatórios e optou por não impor restrições durante as festas de fim de ano. Em janeiro, uma segunda onda começou, ainda mais brutal do que a primeira.
Os imunizantes só chegaram ao Peru em fevereiro e logo provocaram protestos quando alguns políticos furaram a fila da vacina. Recentemente, várias agências começaram a investigar propina paga para profissionais da saúde em troca de acesso a leitos hospitalares. “Ou era isso ou eu a deixava morrer”, disse Dessiré Nalvarte, de 29 anos, advogada que reconhece ter pagado US$ 265 a um homem que afirmava ser o chefe da UTI de um hospital para garantir tratamento para uma amiga da família.
Estadão