A data mais importante do nosso calendário, o magnífico 2 de Julho da Independência da Bahia, na verdade só se encerra no dia 5. É quando os simbólicos carros do Caboclo e da Cabocla voltam para a Lapinha para “dormir outro ano”, tal qual o Cristo Cigano andaluz do poema de João Cabral de Melo Neto. E voltam da mesma forma, com festa e grande alegria. É a tradicional e, estranhamente, pouco conhecida “Volta da Cabocla”: cortejo que faz o caminho inverso (Campo Grande—Lapinha) e devolve os representantes do povo baiano ao pavilhão que os preserva.
Acontece que, se a ida é concorrida, disputada por políticos, militantes e malucos, a volta sempre se passou de forma mais discreta, como que apenas para iniciados. Tanto que “volta da cabocla” já foi até sinônimo de evento vazio. “No meu tempo, significava também algo como ‘você vai ver o que é bom pra tosse’, meio pejorativo”, diz Clarindo Silva, que dispensa apresentações, e completa: “Hoje a coisa mudou, tá cada vez mais cheia a volta, e isso nós devemos ao Maestro Reginaldo”. De fato, a Orquestra Xangô, mesmo após a morte do músico, em 2013, é a principal charanga da festa e responsável por seu crescente sucesso.
Não há consenso entre os historiadores sobre desde quando o retorno dos Caboclos fixou-se no dia 5. Segundo Hidelgardes Vianna, inicialmente não havia data certa, mas eles ficavam no Campo Grande por, em média, uma semana. O que se sabe é que, em 1904, o largo do Santo Antônio, onde os carros ficaram expostos, foi excepcionalmente iluminado com luz elétrica para o evento.
Já sobre a velocidade do cortejo, que sai num pique constante, diz-se que tudo começou por causa de um toró que caiu repentinamente e obrigou a turma a apertar o passo. O certo é que baianos não perderiam essa oportunidade de azeitar a pulsante mistura de “civismo e chalaça” (fórmula cunhada pela mesma Hidelgardes) que caracteriza nossa independência e que tanto a diferencia do tripé que, segundo o antropólogo Roberto Da Matta, caracterizam as celebrações cívicas: formalidade, hierarquia e ordem social.
“Meu pai amava a Volta da Cabocla, assim como outras ocasiões populares, e nós trabalhamos para honrar esse amor e não deixar a chama apagar”, diz Rita Barbosa, filha do Maestro Reginaldo, hoje à frente da orquestra. Outras agremiações, porém, também dão quórum ao retorno, como uma turma da rua Belo Oriente, na Liberdade, que todo ano manda inclusive confeccionar camisetas especialmente para a festa, formando uma espécie de bloco. “Eu aproveito para agradecer e renovar meus pedidos, que a Cabocla sempre me atende”, confessa Lalai, natural de Saubara, lembrando o lado religioso do ato.
E por falar em religião, quem nunca perde a volta, chova ou não chova, é o detentor do título de Ogotun n’le Afonjá do Ilê Axé Opô Afonjá, o escritor Marcos Santana, neto do lendário Miguel Santana, um dos raros descendentes da nação Tapa entre nós. “Eu adoro! É um momento muito especial da nossa terra. E, afinal, alguém tem que pegar na alça dos carros até em casa. Ir é fácil, voltar é para os iniciados”, reflete. Na volta, os carros são puxados por funcionários da prefeitura auxiliados por populares. Todo mundo aproveita para tocar, com intimidade, as esculturas feitas por Manuel Ignácio da Costa ainda no Século XIX.
A Volta da Cabocla sai do Campo Grande às 18h30 e, ao som de músicas como “tumba-ê caboclo / tumba lá e cá” e outras já tradicionais no cortejo, segue em marcha firme até a Lapinha. Às vezes Fred Dantas aparece. O préstito, no entanto, está maior a cada ano. A Lapinha fica toda arrumadinha à espera dos carros, das pessoas e das entidades. Difícil, porém, é colocar a Cabocla e o Caboclo de novo para dentro. Foguetes ressoam no céu. Parece que elas prefeririam ficar um pouco mais nas ruas. Ao lado, algumas pessoas incorporam. “O mistério da Bahia perdura”, como disse um grande escritor local. E ano que vem tem mais.
Fonte:Metro1